Vinhas de te calar, as tuas palavras ando a apanhá-las desde então. Acabavas de nos destruir com uma conversa que começou com um "temos de falar" e terminou num silêncio com paredes transparentes e telhado, sem janelas, onde nos enfiaste para nos guardarmos um ao outro, sem nos olharmos. Fora da casa em que nos meteste, o gato tentava entrar, não descobria a porta até nós, o Rudolfo de patinhas no vidro, miando os donos: no primeiro mio o teu nome, no segundo o meu. O gato é esperto e era o nosso bebé, o teu olhar diz que gostavas de ficar com ele. Ronronas os teus pedidos mudos, flautas sons do pescoço e moves o corpo todo como se fosse uma concertina, os meus olhos fazem skate nas tuas costas em rampa, continuas a vaca de sempre mesmo depois do napalm. Entro na tua pista, sem nos olharmos, faço as primeiras manobras, percorro o teu u vezes e vezes e vezes, ganhas pinças nas pontas, caio, sem nos olharmos, levanto-me, tentas picar-me, desvio-me, picas-me em cheio, desfaço-me em peças. Texto de ficção
HGP
Ando a jogar à cabra-cega dos dias, com os olhos abertos e uma venda na alma. Cheguei à beira dela e disse-lhe: " - Devo deixar-te um destes dias, arranjei trabalho longe, onde só se vai de avião, e acho que vou aceitar". Apesar de tudo, com a Joana foi diferente, foi a única que chegou ao fim, disse que eu era ave rara e que queria ficar comigo para sempre. Senti-me um animal de estimação feliz com o amor do dono, desejado e cheio de vontade de me enrolar aos pés da cama dela sempre por fazer. Eu reagia ao seu amor com sentimentos de circunstância, o melhor que conseguia fazer, não por pena mas porque adorava as festas que me fazia no pescoço com as unhas compridas e resistentes. " - Vais deixar-me?" A frase era já um «ai que eu caio». "- Vou. Fico contigo mais três dias e apanho o avião na sexta-feira. " Os seus olhos faliram e deixaram de me olhar. Levou-me ao aeroporto no dia marcado e da sua vida para fora, sem chorar, esperou atrás do vidro que o meu avião levantasse e deixou marcado naquela placa fria e transparente o seu último beijo para mim. Texto de ficção
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